Primavera - Cecília Meireles

A primavera chegará, mesmo que ninguém mais saiba seu nome, nem
acredite no calendário, nem possua jardim para recebê-la. A inclinação
do sol vai marcando outras sombras; e os habitantes da mata, essas
criaturas naturais que ainda circulam pelo ar e pelo chão, começam a
preparar sua vida para a primavera que chega.
Finos clarins que
não ouvimos devem soar por dentro da terra, nesse mundo confidencial
das raízes, — e arautos sutis acordarão as cores e os perfumes e a
alegria de nascer, no espírito das flores.
Há bosques de rododendros que eram verdes e já estão todos cor-de-rosa,
como os palácios de Jeipur. Vozes novas de passarinhos começam a
ensaiar as árias tradicionais de sua nação. Pequenas borboletas brancas e
amarelas apressam-se pelos ares, — e certamente conversam: mas tão
baixinho que não se entende.
Oh! Primaveras distantes, depois
do branco e deserto inverno, quando as amendoeiras inauguram suas
flores, alegremente, e todos os olhos procuram pelo céu o primeiro raio
de sol.
Esta é uma primavera diferente, com as matas intactas,
as árvores cobertas de folhas, — e só os poetas, entre os humanos, sabem
que uma Deusa chega, coroada de flores, com vestidos bordados de
flores, com os braços carregados de flores, e vem dançar neste mundo
cálido, de incessante luz.
Mas é certo que a primavera chega. É
certo que a vida não se esquece, e a terra maternalmente se enfeita
para as festas da sua perpetuação.
Algum dia, talvez, nada mais
vai ser assim. Algum dia, talvez, os homens terão a primavera que
desejarem, no momento que quiserem, independentes deste ritmo, desta
ordem, deste movimento do céu. E os pássaros serão outros, com outros
cantos e outros hábitos, — e os ouvidos que por acaso os ouvirem não
terão nada mais com tudo aquilo que, outrora se entendeu e amou.
Enquanto há primavera, esta primavera natural, prestemos atenção ao
sussurro dos passarinhos novos, que dão beijinhos para o ar azul.
Escutemos estas vozes que andam nas árvores, caminhemos por estas
estradas que ainda conservam seus sentimentos antigos: lentamente estão
sendo tecidos os manacás roxos e brancos; e a eufórbia se vai tornando
pulquérrima, em cada coroa vermelha que desdobra. Os casulos brancos das
gardênias ainda estão sendo enrolados em redor do perfume. E flores
agrestes acordam com suas roupas de chita multicor.
Tudo isto
para brilhar um instante, apenas, para ser lançado ao vento, — por
fidelidade à obscura semente, ao que vem, na rotação da eternidade.
Saudemos a primavera, dona da vida — e efêmera.
Cecília Raul Meireles
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